terça-feira, março 21, 2006

Falcão – Meninos do Tráfico e Sociedade X Favela

No domingo, 19 de março de 2006, boa sociedade da sociedade recebeu um soco no estômago com a exibição do documentário “Falcão – Meninos do Tráfico”. Realizado pelo rapper MV Bill e seu produtor Celso Athayde, foram exibidas imagens chocantes de uma realidade alheia para muitos de nós. Num trabalho que levou 6 anos, percorrendo o país de norte a sul, foram registradas mais de 90 horas da rotina do tráfico.

Lembro-me de um provérbio que diz que “a pior coisa quando se está no fundo do poço é descobrir que no fundo ainda tem um porão!”. O documentário não citou nomes, gangs, locais, que apenas ficaram um pouco mais claros pelas imagens que se tratavam de diferentes localidades do país, fosse pelo sotaque, fosse pela paisagem. Mas mostrou uma coisa que muitos não perceberam, a guerra de duas facções: Sociedade X Favela.

Pode parecer até estranho, mas tem seu sentido. Logo no início da reportagem, um dos personagens diz o seguinte: “a gente tem que defender os moradores daqui, tem que defender o morro, eu não faço parte da sociedade, eu faço parte da favela”. Ao longo de toda a reportagem o que se percebeu bem foi o seguinte, pessoas excluídas da sociedade tradicional e inseridas na “sociedade periférica”, com suas próprias leis e regras de conduta. Tudo isso me fez pensar o seguinte, como é possível que exista justiça no país, se o que parece ocorrer é a escravidão de sociedade em benefício de outra, onde os excluídos e marginalizados, vivem em “bolsões de pobreza” como as antigas senzalas, discriminados e tratados como animais, sempre vistos como nocivos à sociedade. E pessoas “escravas” que têm dentro de si o desejo de liberdade, o grito contido de esperança.

O documentário mostrou que boa parte dos “soldados” do tráfico está ali por não terem outra chance ou condição. Muitos podem achar isso conversa fiada, mas a realidade é outra. Há alguns meses a França foi assolada por ataques de imigrantes africanos, que vindos de antigas colônias francesas na África viviam na periferia da França. O que sempre foi dito a eles é que eles eram cidadãos franceses, mas esses mesmos cidadãos não recebiam condições iguais ou pelo menos dignas, muitos entrevistados contaram que não conseguiam emprego, porque a cor da sua pele e o seu endereço já denunciavam que eles eram moradores da periferia, que também não contam com segurança, redes de água e esgoto, saúde, escolas, etc. – qualquer semelhança não é mera coincidência. Ora, o que se pode esperar de pessoas que são enxotadas e encurraladas assim?

Durante o documentário, diversos garotos relataram o desejo de tentar algo melhor, ter uma vida mais estruturada, emprego, família. Boa parte deles também foi clara ao dizer que estavam ali para sustentar a família, mas que não queriam ver os filhos envolvidos em tal atividade. O que temos em nosso país, é um genocídio anunciado, a média de vida dos “soldados” do tráfico é até os 16, 17 anos. E as gerações que vão surgindo, vêem no tráfico a esperança e o ápice de vida, admira-se quem porta um fuzil ou uma pistola, quem anda no “movimento”, quem vigia, trabalho, “endola” ou é dono de boca, a moeda corrente é um misto de admiração e cumplicidade com o tráfico, todos estão ali, todos ganham.

O interessante é que onde falha o poder do Estado e surge outro, também faz surgir a esperança. O trabalho iniciado pelo rapper MV Bill junto com outras pessoas é o da CUFA – Central Única de Favelas, que começou em 1998, com 200 pessoas, e hoje tem unidades em mais de 20 estados da federação, atendendo boa parte da população, com cursos, esportes, atividades recreativas, etc.
É incrível a ironia no país, onde não existe dinheiro para saúde, segurança e educação, sobra em “mensalões”, máfias de desvio de dinheiro, e uso do erário para fins pessoais. Vemos um sociedade capitaneada por “carniceiros” que saqueiam e pilham a população, levam a morte e o desespero às pessoas, mas que se assustam quando as mesmas pessoas devolvem a violência cometida contra elas diretamente a eles. Bem dizia o poeta Renato Russo, “Que País é esse”?

Nenhum comentário: