quinta-feira, novembro 14, 2024

Diário de Bordo 17 – Consumismo no Bushcraft, Preparação e Sobrevivencialismo

       
        De uma década para cá, os termos “bushcraft”, preparação e sobrevivência deixaram de ser palavras-código de um segmento muito específico, para se tornarem assuntos de debate mundial, a TV trouxe enxurradas de programas a esse respeito, muitos deles de excelente produção, outros já nem tanto, nada contra isso, acho até importante essa divulgação, mas o que vem junto é o que está se tornando um problema.

A afirmação de I João 5:19 que diz: “Sabemos que somos de Deus, e que o mundo inteiro jaz no Maligno” está claramente se cumprindo, o mundo de fato está cada vez mais “louco” em todos os aspectos, sejam nas questões de desastres naturais que assolam os continentes de diversas formas, seja no fato que basta um simples esbarrão, para que 2 ou mais nações entrem em guerra, buscando a melhor forma de matar por qualquer motivo, na minha opinião, a falência total da sociedade é questão de tempo.

E é aí que esses conceitos entraram com mais força, pois inúmeras pessoas tiveram que aprender bushcraft, preparação e sobrevivência para não morrer, mas isso se espalhou para outros segmentos, o que é muito bom, pois parece que as gerações de hoje nascem dentro de um shopping e não na maternidade, totalmente alienados da realidade.


        É claro que isso fez nascer um novo mercado consumidor, mesmo que digam que já havia produtos para isso, isso não se compara ao que ocorre hoje, facas, roupas, botas, mochilas, equipamentos táticos vendidos para o mercado civil, alimentação, veículos e por aí vai. Não vou ser hipócrita e criticar esse viés, eu concordo que deve existir sim um ramo que atenda bem a esse público, um exemplo simples seria o mercado de facas no Brasil, para quem não sabe ou não se lembra, até meados dos anos 1980, o mercado nacional era praticamente fechado para produtos estrangeiros, e por aqui tínhamos muito poucas opções, as melhores referências eram as fábricas da Tramontina e da Mundial, ambas produziram modelos clássicos de facas, facões, machados e machadinhas, muitas destas, alvos de colecionadores hoje, mas era uma exceção e não uma regra. Hoje, temos todo um ramo da indústria voltado para esse meio, sejam equipamentos novos, sejam equipamentos militares, é só escolher. Mas aí vem ocorrendo um sério problema na minha opinião, as pessoas estão confundindo equipamentos com habilidades e estas duas palavras sequer são sinônimos, não entendeu? Vamos lá!

Ao longo da história da humanidade, o homem teve que desenvolver ao máximo as suas habilidades, nossos ancestrais sabiam improvisar varas de pesca com galhos de árvores até evoluir para o bambu-maçico, - também conhecido como bambu-caniço - sabiam rastrear, caçar, colocar armadilhas, preparar abrigos usando recursos da natureza, conheciam as técnicas de fogo primitivo, faziam amplo uso de plantas medicinais e por aí vai, a evolução dos equipamentos veio da necessidade de se facilitar o uso dessas técnicas, isso é natural, a própria evolução das facas, podendo dar destaque as facas Bowie – a minha preferida – e a Nesmuk, que cumpriam muito bem suas funções, mas ainda assim eram ferramentas, cabia a seus usuários saber como usá-las e quando usá-las, e para isso tinham que desenvolver suas habilidades e conhecer suas limitações. Por décadas, esse conhecimento era passado para as gerações seguintes, mas com o tempo, isso acabou sendo colocado de lado e se perdendo.


         O que vemos hoje é um festival de “influencers” – sinceramente, eu destesto essa palavra e o que ela representa -
  cada um indicando a “bota do apocalipse”, a faca que faz a faca do Rambo parecer uma faca de bebê, calças táticas que não rasgam nem no arame farpado, passando a ideia de que sem isso, você não é nada.

Esse pensamento consumista, aliado com a inanição de conhecimento, tem resultado numa geração anestesiada e que acha o máximo ser inútil e recorrer ao celular para tudo, pode parecer piada, mas isso é bem comum e posso citar algumas experiências pessoais em que pude comprovar essa teoria:

  • Já estive em vários acampamentos com grupos e amigos, em que o número de “lâminas virgens” era enorme, pessoas com facas de marca que acho que nunca saíram da bainha, um caso famoso foi de um colega, que após ouvir algumas piadas sobre sua faca nunca ter sido usada para nada, tirou a faca da bainha, cortou um tomate, limpou a faca e a guardou de volta, nascia alia a expressão “faca tomateira”, que usamos para falar desse tipo de faca;
  • Num camping, um colega teoricamente experiente, foi acender uma fogueira, ele simplesmente tirou uma isca de fogo de churrasco, acendeu, colocou um tronco de quase um palmo de espessura acima dessa isca e achou que ele iria pegar fogo só com isso;
  • Num dos cursos ministrados – acho que o curso era o “Cobra Criada”, se não estou enganado - pelo professor e amigo Giuliano Tonniolo, para introduzir as pessoas nesse ambiente do bushcraft, um dos alunos levou 25 facas para o curso, levou 8 ou 10 para o campo e deixou o restante no carro, mesmo tendo sido orientado sobre o que levar;
  • Na primeira vez que participei do Encontro Nacional de Grupos de Bushcraft, no Rio de Janeiro, bem no meio da mata atlântica, uma pessoa havia comprado uma bota muito cara, mas própria para atividades “outdoor”, e ao chegar no local, se recusou a calça-la dizendo que “não iria usar a bota ali porque o ambiente tinha muita lama”, é sério;
  • Já testemunhei pessoas tentando pescar peixes de 8kg, com anzol e linha para peixes de no máximo 1,5kg;
  • Cansei de ver as pessoas se acidentarem na natureza e não terem sequer um comprimido para tomar, quanto mais um kit básico de primeiros socorros;
  • Por várias vezes, fiz uso de plantas medicinais para ajudar colegas que passaram mal no meio do mato e não tinham nada para se tratar;
  • Já fiz e faço diversos cursos e treinamentos de bushcraft, ministrados por pessoas altamente capacitadas, e já percebi que apesar de participar de um grupo com mais de 130 pessoas no whatsapp, apenas 20% é participante das atividades realizadas ou dos cursos, buscando algum tipo de aprimoramento;
  • Tive uma doença de pele que atingiu minha mão direita e por 6 meses, usei todo o tipo de medicamentos e nada resolvia, após ir numa incursão na floresta amazônica, me apresentaram a árvore sucuúba, da família da seringueira, cuja seiva tinha propriedades medicinais, ao aplicar isso na minha mão, em 24 horas, a doença de pele foi curada e nunca mais retornou;
  • Um policial militar simplesmente resolveu customizar sua pistola e teve a “brilhante ideia” de passar tinta óleo – a mesma usada para pintar portas de metal – na sua arma, que por pouco isso não termina em tragédia durante um treino de tiro;
  • Conheço e já vi diversas pessoas, inclusive um colega que simplesmente estava ligando para o seguro automotivo, para que enviassem alguém para trocar o pneu do seu carro, uma vez que ele não sabia fazer isso.

Se você chegou até aqui, com certeza teve um misto de riso com surpresa, mas infelizmente as coisas estão indo do que relatei acima para pior.

        Uma das melhores explanações sobre toda essa questão, foi feita por Selco Begovic, para quem não sabe, ele é um sobrevivente da Guerra dos Balcãs (Guerra da Bósnia), ele era um sujeito comum, que sequer sabia o que era preparação e sobrevivência e foi pego no meio dessa guerra, durante um ano teve que viver numa cidade sitiada, sem água, comida, eletricidade e com recursos escassos, teve que se tornar um sobrevivencialista da noite para o dia para sobreviver, testemunhou todo o tipo de horrores e atrocidades, violência gratuita, comeu alimentos podres, brigou por coisas ínfimas, como uma lata de sardinha, teve que matar para sobreviver, seus relatos estão no seu blog SHTF Shcool - https://www.shtfschool.com/, mas também foram traduzidos pelo Júlio Lobo, no blog https://sobrevivencialismo.com/tag/selco/, recomendo muito a leitura dessas postagens traduzidas.

Ele disse o seguinte:

Sobrevivencialistas e preparadores são (ou supostamente são) a definição de pessoas espertas, que não confiam nas ¨!%# que transmitem nos noticiários, que seguem seus próprios caminhos para serem vencedores no fim.

Na realidade a verdade é bastante diferente.

Nós todos gostamos de dizer que somos diferentes mas assim como todos os outros, também podemos ser influenciados.

Quantas vezes você ou algum preparador construiu uma opinião formada sem ao menos checar se ela fazia sentido? Quantas vezes você comprou um equipamento novo somente porque achou que “era uma boa ideia”? Geralmente o caminho mais fácil é acreditar no que os outros dizem e não tentar nada por si próprio, claro.

Uma das coisas mais estúpidas ou piores erros que você pode fazer ao entrar na preparação é se deixar levar pela “moda”. Coloque o rótulo de preparador em você e então você começa a pensar que é mais esperto que os outros.

Você pode estar pensando que preparadores e sobrevivencialistas não podem entrar na moda pois isso não faz sentido, mas sim, nós podemos.

Nós vamos comprar uma mochila nova porque alguém disse “é a melhor escolha” e nem mesmo nos damos trabalho de checar quem é esse cara que disse isso. Ou vamos dizer “eu tenho a melhor arma para uma crise” pois alguém colocou uma gigantesca quantidade de dinheiro para fazer marketing desse modelo.

Se a maioria dos preparadores olharem para seus estoques verão que existem muitos itens que eles sabem utilizar em teoria, mas não na prática.

Posso dar minha opinião muito pessoal a respeito dessa afirmação do Begovic, há um vídeo no youtube de um certo “influencer” que fez uma comparação entre diversos produtos para bushcraft, preparação e sobrevivência, e em certo momento ele comparou o produto A com o produto B, e mostrou uma série de argumentos questionáveis, afirmando que o produto A era melhor que o B, ele só se esqueceu de dizer 3 coisas:

1.      Ele era patrocinado pelo produto A;

2.      Que o produto B já tem mais tradição no mercado, é muito melhor e é usado no mundo inteiro;

3.      Que o produto A tinha uma vida útil muito menor que o produto B, mas que custava mais do que o produto B.

Ou seja, qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência, para esse pessoal, que se d@*# a ética, o importante é vender produtos e usar o cupom de desconto para isso, ou seja, ocorre aqui o que Begovic afirma logo abaixo:

O problema é que hoje são as pessoas que dizem o que é bom para você e não o que realmente é bom para você, que faz sentido em você ter.”, ou seja, Coisas como botas, calças e bandanas apropriadas podem fazer muita diferença. Uma capa de chuva pode significar muito se você for forçado a usar uma casa destruída sem telhado como abrigo durante a chuva.

Sempre que eu encontro discussões do tipo “Equipamento tático – o que é melhor?” Eu lembro de coisas como a bandoleira que meu vizinho tinha para sua pistola feito com elásticos ou o coldre para facas de cozinha feitas com capas de livro e coisas semelhantes.

Não é que precisemos voltar para a idade da pedra com equipamento e sermos maus. É sobre o fato de que pessoas com habilidades para se adaptar têm mais chances de sobreviver. Não é que seja errado escolher equipamentos legais, é sobre a possibilidade de um vovô de setenta anos com um rifle enferrujado matar você não importando o que você estiver usando.

Então basicamente um simples lembrete é: Passe mais tempo aprendendo habilidades ou refinando conhecimentos do que pesquisando e comprando equipamentos.

Se você chegou até aqui, vou resumir tudo em dois parágrafos:

Se guie pelo versículo de 1ª Tessalonicenses 5:21 “Mas ponde tudo a prova. Retende o que é bom”;

Tem um ditado que diz: “quem quer fazer, arruma tempo, quem não quer, arruma desculpas!”, gosto muito de uma frase em latim que diz o seguinte: “Omnia mea mecum porto” - “Tudo o que é meu eu carrego comigo”, ou seja, minha inteligência e minhas habilidades ninguém tira.

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